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Artigo/Opinião: – Carta aos estudantes de Medicina – Por Maria Tereza Paraguassú (*)

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Carta aos estudantes de Medicina

  •  Sempre temi o dia em que descobrissem a vulnerabilidade dos médicos e começassem a explorá-la comercialmente. Infelizmente, esse dia chegou…

Em 2010, três meses após receber meu diploma, aconteceu algo que marcaria profundamente a medicina brasileira. Não foi uma modernização na base curricular dos cursos de medicina e muito menos uma atualização na lei do Sistema Único de Saúde (SUS). Foi simplesmente o nascimento do Instagram. Seis anos depois lançaram o TikTok, em seguida veio a pandemia e, com ela, uma relação indissociável entre a vida do brasileiro e as redes sociais.

Ao final de 2024, o Dicionário de Oxford elegeu brain rot como a palavra do ano. Seria a deterioração do estado mental ou intelectual de alguém em decorrência do consumo excessivo de conteúdo online de baixa qualidade.

Estou, portanto, naquele limbo entre o velho e o novo. Naquele ponto em que a mente de principiante ainda não foi calcificada pelas convicções da experiência. Naquela fase em que estou disposta a abraçar as novidades, desde que veja sentido nelas… e já vi o suficiente para concluir que estamos vivendo uma distopia.

Sempre temi o dia em que descobrissem a vulnerabilidade dos médicos e começassem a explorá-la comercialmente. Infelizmente, esse dia chegou. Nossa vulnerabilidade é a falta de tempo. Sim, quem já está acostumado a não ter tempo desde a fase escolar acaba por atrofiar áreas importantes da vida, terceirizar decisões determinantes e permitir ingerências em espaços que deveriam ser restritos.

O que acontece quando sua vulnerabilidade é percebida? Depende. Se for descoberta por alguém que desconsidere sua humanidade e cujo objetivo seja tirar vantagem, provavelmente essa pessoa vai nomear seu problema, criar uma demanda em seu nome e lhe vender a solução.

Pois bem… um belo dia o Instagram percebeu que eu era médica e começou inundar meu perfil com anúncios patrocinados. Basicamente, eram propagandas de soluções voltadas a captação de pacientes particulares, o que mudava era o nome da solução proposta. Dividi esses anunciantes em duas categorias: anunciantes leigos e anunciantes médicos.

Vou começar pelos leigos. Um desses anúncios oferecia um curso para ensinar médicos a captar pacientes high ticket, ou seja, pessoas de elevado poder aquisitivo dispostas a pagar caro por consultas e procedimentos. Outro leigo se propunha a ensinar como se tornar uma “celebridade médica” e, para tanto, ofertava uma mentoria com questionáveis técnicas de marketing, nas quais os pacientes eram tratados como autômatos que deveriam ser capturados por uma rede de estratégias de vendas. Depois, surgiu uma mulher usando blazer de alfaiataria e braceletes dourados, dizia que era preciso se vestir daquela forma para causar impacto visual positivo e ter o respeito dos pacientes.

Agora, vem o aspecto mais preocupante desse fenômeno: a participação de médicos nesse ecossistema. Apareceu-me o anúncio de uma médica simulando a realização de uma consulta; a meio da encenação, a médica olhava para a câmera e dizia mais ou menos assim: “com esse tipo de atendimento você nunca conseguirá engajar o paciente no tratamento (problema criado), mas se você participar do nosso programa será um emagrecedor de sucesso (a solução do problema)”.

E como esse, vi vários outros anúncios nos quais um colega sugeria que “apenas” fazer uma boa graduação e uma boa residência médica seria insuficiente para ter sucesso, e que a única saída para alavancar a carreira seria comprar o curso ou o método ofertado.

As taxas de adoecimento mental e suicídio entre médicos e estudantes de medicina são maiores que as da população geral. Há uma série de fatores que, quando somados, criam um panorama desolador em termos de saúde mental: rotina de estudos extenuante, distanciamento da família e amigos, abandono de hábitos de vida saudáveis, abuso de substâncias, insegurança quanto às próprias capacidades, assédio moral e carga horária de trabalho excessiva.

Se antes de 2010 tínhamos a esperança de prosperar após o fim da residência médica, hoje, uma horda de colegas diz, de várias maneiras, que você é insuficiente e que sua formação foi incompleta. Dizer isso a quem está no espectro que descrevi acima é cruel, principalmente quando é dito por um par.

Some-se a esse cenário o crescente uso de deepfake e o fim da checagem de fatos. É nessa selvageria que os estudantes de medicina estão sendo formados e um sintoma dessa doença foi o vídeo que as duas estudantes gravaram no InCor. Falaram de forma jocosa e leviana sobre o drama de uma jovem que passou por provações que a maioria das pessoas sequer é capaz de imaginar. A dor do outro não foi lugar de conexão e empatia, mas foi usada como trampolim de exposição midiática.

Em 2010, essas estudantes estariam muito ocupadas com uma prancheta na mão e uma enfermaria inteira para examinar. Hoje, o foco é gravar vídeos virais. Além de pagar a anuidade do Conselho Federal de Medicina (CFM) e outros custos inerentes à prática profissional, o jovem médico precisa contratar social media, video maker, consultoria de imagem e anúncios patrocinados.

Afinal, esse cenário emergiu naturalmente para atender a uma demanda de mercado ou foi criado artificialmente para nos adaptarmos ao caos? A um contexto social marcado pela desvalorização da carreira médica no SUS, pela pejotização disfarçada de empreendedorismo e pelo consumo excessivo e irracional das redes sociais.

A promessa inicial das comunidades virtuais era conectar pessoas. Hoje elas conectam pessoas a profissionais, empresas, instituições, governos, movimentos sociais e meios de comunicação. Por ora, em um deserto de responsabilização, as plataformas têm apenas lucrado com a deterioração da profissão médica e a vulnerabilidade de seus usuários enquanto pacientes.

Fiscalizar a fossa abissal do Instagram e do TikTok é algo que suplanta a capacidade dos recursos humanos e logísticos de uma autarquia como o CFM. Talvez a saída passe por um compromisso das plataformas em criar regras específicas para as contas profissionais de áreas sensíveis e regulamentadas, como é o caso da profissão médica.

Alguns dizem que quem não se adaptar a esse novo status quo ficará para trás. Ousarão até citar Belchior e dizer que “o passado é uma roupa que não nos serve mais”. É que tudo isso me parece uma “velha roupa colorida”, daquelas que ao longe parecem modernas, mas que de perto cheiram a naftalina.

Não há nada de novo na parametrização do comportamento, na massificação do pensamento e das atitudes. Não há nada de revolucionário na desumanização do outro. Não há nada de disruptivo nessa linha de montagem de avatares médicos.

Será que a melhor estratégia é se adaptar às redes sociais ou simplesmente tentar sobreviver a elas?

(*) Autora-Fonte: Maria Tereza Paraguassú Martins Guerra – Médica, endocrinolista

 


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