Movimento/História & Politica: O pioneirismo de Pernambuco no movimento das Diretas Já
O pioneirismo de Pernambuco no movimento das Diretas Já
Ato em Abreu e Lima desafiou a Ditadura para cobrar retorno das eleições diretas (*)
A Praça da Bandeira, situada no centro da cidade de Abreu e Lima, na Região Metropolitana do Recife (RMR), parece com tantas outras do Brasil, com árvores, canteiros e uma mureta de cimento para sentar e descansar. Em 31 de março de 1983, contudo, aquele pequeno quadrilátero cercado por uma escola pública e um posto de saúde presenciou um evento decisivo para a história recente do Brasil. Ali ocorreu aquele que é considerado o primeiro ato de rua em defesa das eleições diretas para presidente do Brasil durante a Ditadura Militar.
PALANQUE – Ex-vereadores Severino Farias e Reginaldo Silva, organizadores do primeiro ato das Diretas Já, na praça que reuniu os manifestantes em Abreu e Lima. Foto: Roberta Guimarães
A data não foi escolhida por acaso. No dia 31 de março, as Forças Armadas costumavam celebrar a tomada do poder com desfiles públicos. A Ditadura Militar começou em 1964, com a deposição do presidente João Goulart. Foi um período marcado por censura, autoritarismo, perseguição e morte de adversários políticos.
No final dos anos 70, com o desgaste dos governos militares, teve início a abertura política, definida pelo presidente da época, o general Ernesto Geisel, como “lenta, gradual e segura”. Em 1982, com uma série de restrições, os brasileiros puderam finalmente voltar a escolher os governadores dos Estados. Mas o direito de votar para presidente ainda levaria muitos anos para ser conquistado.
Eclosão
LUTA – “Sofremos muito, mas não tínhamos medo”, contou Severino Farias. Foto: Roberta Guimarães
“A nossa pergunta era: por que não votar para presidente?”, conta o ex-vereador Severino Farias, um dos promotores do ato de 1983. Filiado ao PMDB, o principal partido da oposição, ele havia sido o parlamentar mais votado na eleição de 1982, a primeira do município de Abreu e Lima, emancipado naquele ano do vizinho Paulista.
Natural de Orobó, no Agreste Setentrional, de onde partiu junto com o pai em uma viagem de jumento por três dias em direção à Capital, Farias era operário numa das muitas fábricas da cidade. Participava da Ação Católica Operária (ACO), movimento da Igreja ligado ao então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, que atuava em defesa da democracia. “Eu vinha do sindicato e era perseguido pelas forças militares. Nós sofremos muito na época, mas não tínhamos medo”, afirma.
O ato de 31 de março de 1983 foi muito simples, de acordo com os participantes. “Não havia palanque. Nós usamos umas caixinhas de som e subimos na carroceria de um caminhão”, conta Reginaldo Silva, também ex-vereador da primeira legislatura da Câmara de Abreu e Lima. Assim como o colega Farias, Silva trabalhava no chão de fábrica, era filiado ao PMDB e tinha ligação com o movimento operário da Igreja Católica.
ATO – “Não havia palanque. Usamos umas caixinhas de som e subimos na carroceria de um caminhão”, disse Reginaldo Silva. Foto: Roberta Guimarães
De acordo com Silva, cerca de cem pessoas compareceram ao protesto. Infelizmente, contudo, não há fotos da manifestação. “Nós até chamamos um fotógrafo da cidade para fazer o registro, mas ele teve medo e não apareceu”, relembra. O fato tornou-se folclórico entre os militantes da época e até hoje rende risadas. Também participaram da organização do ato os ex-vereadores José da Silva Brito e Antônio Amaro Cavalcante, ambos já falecidos.
“Nós éramos um grupo muito unido. Havia operários, eletricistas, estudantes e até alfaiates”, lembra o procurador de Justiça Aguinaldo Fenelon, que por dois mandatos comandou o Ministério Público de Pernambuco (MPPE). Estudante universitário na época, ele era o primeiro suplente de vereador da Câmara de Abreu e Lima e também integrou o ato.
“A gente fazia política por um ideal, nossa bandeira era o restabelecimento da democracia”, destaca Fenelon.
Os vereadores também contavam com apoio em outras casas legislativas. Na Alepe, tinham o suporte do deputado Sérgio Longman, do PMDB.
Memória
Mas, se hoje sabemos que o ato dos vereadores de Abreu e Lima foi corajoso e pioneiro, na época eles não tinham noção da relevância daquele momento. “A gente não sabia que era o primeiro ato, e não tinha noção da importância. O que sabíamos é que estávamos no caminho certo”, afirma Reginaldo Silva.
ESQUECIMENTO – “Os estudantes do colégio ao lado da Praça da Bandeira não sabem do movimento”, lamenta o jornalista Gamal Brito. Foto: Roberta Guimarães
Até hoje, contudo, a ocorrência do evento é pouco conhecida em Abreu e Lima. “Infelizmente as pessoas não conhecem a história da cidade. Os estudantes do colégio ao lado da Praça da Bandeira, onde ocorreu o ato, não sabem do movimento”, ressalta o jornalista Gamal Brito. Ele é filho do ex-vereador José da Silva Brito, já falecido, que também participou do protesto.
Educador e sociólogo, José da Silva Brito é lembrado pelos colegas como o intelectual do grupo. Antes da emancipação de Abreu e Lima, havia concorrido à Câmara de Vereadores de Paulista, sem sucesso. Conquistou a cadeira de legislador no novo município com a ajuda de uma inovação: a impressão de um panfleto com a foto dele de cabeça para baixo, evocando um antigo mote eleitoral do ex-governador Cid Sampaio: “a hora da virada chegou”.
Diretas Já
A hora da virada para a democracia brasileira, no entanto, ainda levaria alguns anos para chegar. Apenas 18 dias depois do ato em Abreu e Lima, o deputado federal Dante de Oliveira, do PMDB de Mato Grosso, protocolou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 5, que propunha o estabelecimento de eleições diretas para presidente e vice. Inicialmente desacreditada, a proposta ganhou força com a eclosão da campanha das Diretas Já, um dos maiores movimentos populares da história do Brasil.
As Diretas Já levaram milhões de pessoas às ruas em defesa do direito de votar para presidente. Reuniu artistas famosos e algumas das mais influentes lideranças do País, como o presidente Lula e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 25 de abril de 1984, todavia, a proposta não obteve o apoio necessário no Plenário da Câmara dos Deputados. Foi rejeitada com 289 votos a favor, 65 contra e 113 ausentes. O Brasil só voltaria a escolher o presidente em 1989, quando Fernando Collor venceu o pleito.
Mas, se a emenda Dante de Oliveira foi derrotada no Congresso, as sementes das Diretas Já brotaram poucos anos depois. Em 1988 o Brasil ganhou uma nova Constituição e restabeleceu o governo dos escolhidos pelo povo. Quarenta anos depois do início da campanha das Diretas, os brasileiros já foram às urnas nove vezes para escolher presidente. É o mais longo período de democracia ininterrupta da história do País.
Por isso, hoje, nada mais justo lembrar que, no dia 31 de março de 1983, no fim de tarde de uma quinta-feira, em cima de um caminhão, numa pracinha do centro de Abreu e Lima, um grupo de cerca de cem pessoas desafiou a Ditadura e deu início a essa luta.
(*) Fonte: site da ALEPE – Autor: Haymone Neto
]Imagens em destaque: Agência Senado (home e página de Notícias Especiais)