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Artigo/Opinião: Minha pátria é Pernambuco – Por Joaquim Falcão (*)

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Minha pátria é Pernambuco

 

A primeira vez que se escreveu a palavra “pátria” em um documento público brasileiro teria sido, segundo José Carlos Ruy, em 15 de maio de 1645. Século XVII. No Engenho São João, na Várzea.

E que existe até hoje. Naquela época, pertencia a João Fernandes Vieira.

Ali, dezoito líderes locais se reuniram para conjurar a Insurreição Pernambucana. Retomar o já então Brasil, mas não ainda brasileiro, dos holandeses. Holanda era a maior potência militar e econômica então do mundo. Sua força motora não vinha apenas do Estado. Mas sobretudo de empresa privada: a Companhia das Índias Ocidentais.

A invasão holandesa privatizara nossa pátria.

Fazíamos parte de um império colonial. A pátria invadida, o solo invadido, era português. Com a invasão, não éramos Estado nem holandês nem português. Manuel de Barros, poeta maior, poderia dizer que éramos ninguém. Mas, com a Insurreição, começávamos a querer ser alguém.

Os dezoitos líderes representavam a pluralidade e a mestiçagem que nos deu origem e permanece até hoje: brancos, negros, índios, mestiços de todos os gêneros. Firmaram então um pacto, compromisso de todos, em fazerem esforços, o melhor, em todos os momentos, para que Pernambuco retomasse a pátria, mesmo portuguesa.

Venceram. Conseguiram. Marcaram nosso destemor nativista para sempre.

Depois da Insurreição Pernambucana, veio, no século XIX, a Confederação do Equador. Ambos esses momentos comungam diferentemente do mesmo ideal: a pátria para os pernambucanamente brasileiros.

Em 1824, vivemos o sonho de Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei Caneca, e seus também poucos líderes como Manuel de Carvalho Paes de Andrade, Natividade Saldanha e outros. Também unidos pelo compromisso da defesa da pátria. Que é solo e sentimento. Às vezes, mais um do que outro.

Sem o jugo qualquer de outrem. Nem de empresa privada, nem de Estado nacional. Nem mesmo da própria monarquia portuguesa. De Portugal. Sonho revolucionário de laivo separatista.

A arena desta luta não foi feita apenas de soldados, armas, exércitos e regimentos. Foi também embate de ideias. De conceitos pragmáticos que se faziam ações.

De um lado, Frei Caneca propõe e modela um conceito sintético de Constituição. Diferente do conceito de D. Pedro I. Mas tão sintético como um tweet: “A constituição é a ata do pacto social”. Nada mais do que três palavras. Dizem o tudo necessário.

“Ata” significa documento formalizado. Em geral, escrito. É resumo de discussão anteriormente feita entre diversos participantes de uma reunião com as principais decisões tomadas. Assinado, aceito e reconhecido por todos. Esta reunião chama-se “assembleia constituinte”.

“Pacto” significa acordo capaz de unir os desacordos existentes ou potenciais. Inclui passado, presente e futuro. É compromisso que não esconde a divergência. Aliás, só existe pacto justamente porque existe divergência ou diferenças prévias entre os participantes signatários. Do contrário, não seria necessário. É pressuposto indispensável.

“Social” significa que a constituição não caiu do céu (e escolhi esta citação em homenagem e saudade do ministro Sepúlveda Pertence, que em julho de 2023 nos deixou). Não se faz com os pés na lua. A constituição seria feita com os pés encharcados da pátria pernambucana também. É pacto feito pelo gênio, interesses, gostos e desgostos da sociedade. Nasce, muda, vive e morre dentro da sociedade. Gilberto Freyre diria que a constituição é “palpavelmente” social.

Não é abstração nem apenas forma. É realidade vivente, vivida e a viver. A redução da constituição a mera e manipulável forma de topoi, palavras ocas, o que de quando vez ocorre, é captura e desconstitucionalização da pátria. Desconstituição.

Do outro lado, D. Pedro I tinha outro conceito de constituição. Aceitou convocar uma assembleia nacional constituinte. Mas impôs limites. Teriam que elaborar uma constituição que fosse antes de tudo “digna” dele mesmo.

Ou seja, primeiro eu. Eu e os meus.

Mas atenção. Não vamos reduzir esta disputa aos seus dois líderes: D. Pedro I e Frei Caneca. Como bem anota Evaldo Cabral de Mello, havia muito mais em jogo. Sobretudo a disputa pelo poder do Brasil entre metrópole (centro, sudeste e sul) e províncias (norte, já que inexistia o conceito de nordeste então).

Foi um momento de tensão, seguidamente repetido no Brasil, entre sístole e diástole. Centralização e descentralização do poder. Envolvido nas aspirações de independência do Brasil de Portugal e, desde 1817, eventual tensão entre monarquia e República.

Havia uma complexidade, além de uma disputa entre metrópole e província, afirma Evaldo Cabral de Mello, que grande parte dos historiadores, sobretudo solistas, até hoje teima por desconhecer. Ou pelo menos minimiza. A da ampla independência. A da “outra independência”.

O resultado foi que D. Pedro I venceu. Voltou atrás. Dissolveu a Constituinte de 1823 que ele mesmo convocara. Enfartou a constituição democrática em curso. E outorgou a sua.

A analogia instigante entre estes dois exemplos históricos, com o século XX e XXI, e os tempos atuais, se não obrigatória, pelo menos é adequada. E me surgiu imediata.

Em 4 de julho de 1971, no Recife, ocorreu outra reunião que também se fez histórica em plena ditadura. Era no governo Médici. Ocorreu na Assembleia Estadual, às margens do rio Capibaribe, o “Segundo Seminário de Estudos e Debates da Realidade Brasileira no Campo Político, Social e Econômico”.

O que há atrás de um nome? Complexo e extenso nome?

O nome de seminário era apenas manto diáfano para se construir política oposicionista. O espaço era mínimo, vigiado e perigoso. Às vezes, mortal. O nome seminário não escondia nada, mas revelava tudo. Era “neutro” espaço do tudo e todos possíveis. Era política. Política. Política. Oposição ao regime. Risco. Invisível luta renhida, do visível vigiado.

Coincidência ou não, na época da independência, Pernambuco tinha outro “seminário”. Lócus das ideias então fora do lugar. Gestação dos revolucionários. Era o Seminário de Olinda. O centro intelectual onde Frei Caneca, ainda muito jovem, ampliou suas ideias outrora. Seminário que não era ainda de árvore plantada. Somente sementes de liberalismo, republicanismo e tantos mais. Sementes a vingar e vingar.

Todos os líderes da oposição: Ulysses Guimaraes, Tancredo Neves, Franco Montoro, Freitas Nobre, Alencar Furtado, sem falar dos pernambucanos Roberto Freire, Marcos Freire, Fernando Lyra, Byron Sarinho, quase todos, estavam lá em 1971. Inclusive o deputado estadual, inquieto, sério, articulador, às vezes brabo, Jarbas Vasconcelos.

Jarbas Vasconcelos então propõe que a “ata”, o documento final, que se chamaria de Carta, incluísse novo tema. A convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte logo para 1974. Não foi decisão tranquila.

O PMDB estava divido entre moderados e autênticos. E ausentes. Tancredo Neves, o mestre do receio vitorioso e virtuoso, logo se opôs. Seria dura provocação aos militares.

“Filho, não bote o peito na ponta da baioneta. Vamos ficar abrigados debaixo da árvore e esperar a tempestade passar. Depois nos retornaremos a luta”.

Quem sabe não faz a hora. Espera acontecer.

Em depoimento a Tulio Barreto, Paulo Sergio Scarpa e Sergio Montenegro Filho, Jarbas revela sua proposta: “Resolvemos em uma reunião no Grande Hotel que iriamos apresentar uma tese em defesa da convocação da constituinte. Por que constituinte? Porque nós achávamos que o país não tinha uma constituição. O país tinha uma carta outorgada, não uma constituição.”,

O apartamento no Grande Hotel para um político quase nômade, seria por ano sua célula de combate. Seu situation room. Onde recebia, se reunia e conjurava com todos, o dia todo.

A Carta do Recife com a convocação constituinte passa a ser chamada como a Carta Vermelha. Cor aliás que Jarbas usaria sempre em suas campanhas.

Em 1971, a pátria aparentemente constitucional era composta pelos Atos Institucionais e/ou a Constituição de 1967. Ambos outorgados à sua maneira. Não havia uma só Constituição. Havia duas. A constituição outorgada no fundo era uma conveniente e manipulável pirâmide de duas cabeças.

Pacto não se outorga, disse Frei Caneca a D Pedro I. Não se impõe. Foi morto de morte matada. Morte fuzilada. Pacto é promulgado por todos os participantes, mesmo pelos momentaneamente descontentes. Pacto é celebrado.

Como diria depois o bispo de Aparecida do Norte, D. Orlando Brandes: “Pátria amada não pode ser pátria armada”.

A mídia nacional e as autoridades políticas tomam um susto com a Carta do Recife e reagem. Fortemente se opõem à convocação da Assembleia Nacional Constituinte. Consideram a proposta comunista. Procuram estigmatizar Jarbas com o assombro do ser comunista. Mentira. Embora fosse verdade agir sempre em alguma sintonia com o partido comunista.

Jarbas Vasconcelos não é nem nunca foi comunista. É um liberal, social-democrata, progressista e de raiz.

Para não mencionar que sua ascendência é quase toda de senhores de engenho. Sua ex-esposa Neide Regis de Vasconcelos também é de ascendência de senhores de engenho. Jarbas escapou de um determinismo histórico de sua classe. Ideologias necessariamente não fazem destinos. Seu primeiro emprego foi como porteiro da Assembleia Estadual, nos lembra Ennio Benning.

O que então fez e faz o destino de Jarbas? O que o leva para 1971? E o traz até hoje?

Para quem convive com ele, como eu, acredita-se que seu motor é destemor e coragem. Não só política, mas pessoal.

O senso comum e os dicionários definem o que seja coragem. É a ação, o agir, que vem do cor, coração. O que coragem quer dizer na política?

Quer dizer que, na escolha que o político tem de fazer entre agir influenciado pela razão ou pela emoção, opta-se pelo coração. Que comanda a emoção. Ou seja, abandona-se possível racionalidade.

A racionalidade é quem faz o cálculo custo/benefício sobre a conveniência e consequências da opção política. E o que este cálculo indicava naquela reunião no Grande Hotel?

Sinal de perigo. Alta probabilidade de risco. Da liberdade. Da prisão. Da tortura. Da vida. Da vigilância da intimidade. Do angustiar e prejudicar a família. Do se esfacelar. Do não poder trabalhar. Do sufocar financeiro. E tanto mais.

O perigo do exílio da pátria. De ser apátrida. Sem pátria. Quase pária.

Como político, Jarbas Vasconcelos não viveu o perigo da oposição longe dele. Colocou-se dentro dele. Não se enriqueceu na política. Enriqueceu a política.

Sua missão-obsessão foi retomar a pátria – liberdade, igualdade, participação, sentimento, pertencimento – orgulho de ser pernambucano.

De 1971 a 1988, quando promulgada a nova constituição, foram dezessete anos.

Venceu.

(*) Autor/Fonte: Joaquim Falcão é pernambucano, jurista, professor, imortal da ABL.

Fonte: – O texto, compartilhado  é o prefácio que ele assina para um dos dois volumes iniciais da biografia de Jarbas Vasconcelos, escrita pelo jornalista Ennio Benning, lançada na última quinta-feira, 31/08.

 


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