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Destaque/História: O Calvário de Frei Caneca, 199 anos do fato consumado (*)

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O Calvário de Frei Caneca, 199 anos do fato consumado

–  Por onde passava, apareciam as damas às portas ou varandas. Via-se que todos balbuciavam orações     e olhavam piedosamente para a vítima e para o céu, alguns tinham crise de nervos.

No ocaso da Confederação do Equador, bloqueado o Porto do Recife, as tropas Imperiais marcharam sobre a cidade, caía o Império da Democracia e reerguia-se o da Tirania. Estavam perdidos os Patriotas e a causa da liberdade. Os dias de Frei Caneca estavam contados, a sua sentença já estava lavrada; procurou, pois, com outros companheiros, a salvação na fuga e, partindo para o interior da Província, atravessou a Paraíba chegando ao Ceará. As tropas Imperiais partiram em perseguição dos revolucionários; alcançando-os; firmam a capitulação e Frei Caneca e seus companheiros caem em poder dos algozes.”.

Julgamento sumário

Trazido para o Recife, o religioso é lançado, incomunicável, em cela infecta, no dia 17 de dezembro, para ser julgado sumariamente. Em vão se defendeu, por escrito, a 26 desse mês, sua condenação era irremediável e foi-lhe lida em 10 de janeiro de 1825, que surpreendeu o clero do País:
Morte natural para sempre, no lugar da forca e, imperturbável como a ouvira ler, voltou para prisão que deveria servir-lhe de oratório, durante os três dias da lei.
Esses três dias ele os ocupou em, vejam bem, animar os amigos que o visitaram, esses sim, inconsoláveis, aconselhando-os em velar pela liberdade da Pátria e em cartas de salutares conselhos às filhas do seu amor terreno.

São desse curto período os versos conhecidos por hymna de Frei Caneca, dos quais presentearei os leitores com, apenas, três estrofes:

“Entre Marília e a Pátria
Coloquei meu coração
A Pátria roubou-me o todo;
Marília que chore em vão

Medonha cala…
Da morte fera e cruel
Do rosto só muda a cor
Da Pátria o filho infiel

Tem fim a vida daquele
Que a Pátria não soube amar
A vida do patriota
Não pode o tempo acabar”.

Crueldade imperial

De nada adiantariam os pedidos e até súplica, para poupá-lo da sentença. O próprio cônego de Olinda interceptou, segundo um seu biógrafo, professor Jorge Silva, meu saudoso lente do Ginásio Dom Vital:
“A Confederação do Equador foi a trena aferidora do caráter de D. Pedro I. Nela não existe nada mais desconcertante que o estudo da personalidade do nosso primeiro imperador.”
Em 12 de janeiro, Frei Caneca confessou-se com o seu provincial Frei Carlos de São José.

Descrição do DP

Baseado em informações de Mário Melo, contidas no Diário de Pernambuco de 13 de janeiro de 1924, temos que:
“Frei Caneca desceu as escadas da prisão, ainda com vestes sacerdotais,e seguiu, em cortejo, que marchou lentamente pela então Rua da Cadeia Nova (trecho central da atual Rua do Imperador), entrou na Rua do Crespo, atual 1º Março, chega na Praça da União (Pracinha do Diário) enveredando pela Rua do Queimado (Duque de Caxias), entrou no Pátio do Livramento, contornou a igreja, pela Rua Direita e parou em frente ao Pátio do Terço, à porta de cuja igreja estava armado um altar como em noite de Natal, para a Missa do Galo. Durante todo o percurso do cortejo, o meirinho, badalando uma sineta para chamar a atenção do povo, dizia em voz soturna:
_Vae executar-se a sentença de morte natural, na forca, proferida contra o reo frei Joaquim do Amor Divino Caneca!
Por onde passava, apareciam as damas às portas ou varandas. Via-se que todos balbuciavam orações e olhavam piedosamente para a vítima e para o céu, alguns tinham crise de nervos.
Parado que foi o cortejo em frente à Igreja do Terço, a Tropa fez um semi-círculo, com a frente voltada para o templo e alguns padres paramentados de sobre-peles afastaram da vítima o algoz, o ajudante, e o meirinho convidaram o réu a aproximar-se do altar.
Paramentaram-no como se fosse celebrar a missa. Abriram dois missais, em cada ponto do altar. Foram lidos alguns trechos do santo livro. A certo sinal dos oficiantes, um dos padres, que estava mais próximo de Caneca, aspergiu a casula que o ornara e retirou-a.
Nova leitura dialogada, aspersão, incenso e retirada da estola. Com igual cerimônia, foram retirados, cada um de per si, o manipulo, o cordão, a alva, o amitio e, finalmente, o hábito carmelita. Frei Caneca ficou em camisa, calça e ganga. O povo assistia bestializado o espetáculo inédito de uma degredação religiosa que houve em Pernambuco.

Grandeza do frade

Maior que se avizinhava era que Frei Caneca não perdeu nem a paciência, nem a resignação.
Não estava ainda finda a cerimônia.
Os sacerdotes oficiantes circulavam o padecente e fizeram sinais na coroa e entregaram o ex-religioso ao meirinho que lhe vestiu a velha alva de algodão de condenado.
A desautoração foi pelo arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Coelho da Silva Coutinho, e foi considerada ilegal pelo arcebispo de São Paulo Dom Duarte Coutinho.
O cortejo então tomou a mesma organização, marchou pelo Pátio do Terço, entrou na Campina do Taborda e contornou a fortaleza das Cinco Pontas em cujo ângulo sul estava plantado o instrumento do martírio. Subindo do quadrado, a vítima galgou a escada, desembaraçadamente, e sentou-se perto do laço, à espera do seu fim.
Houve um silêncio tumular, interrompido, apenas, pelos soluços da assistência. Frei Caneca, tendo ao seu lado frei Carlos, olhava, placidamente, para a multidão.

Rebelião dos carrascos

Nisto se ouve um rumor da queda de um corpo. Depois pancadas. Eram coronhadas em Agostinho Vieira, o carrasco que, também condenado à morte, por crime comum, se recusava, terminantemente, a enforcar o patriota, embora a promessa de comutação da pena: _ mate-me _ gritou sob os maus-tratos da soldadesca _ mas não cometerei tal desumanidade. Chamado o ajudante do carrasco, outro assassino condenado à morte, igual recusa, iguais maus-tratos. O responsável pela execução manda um expresso à cadeia, com ordem de trazer qualquer sentenciado para a cerimônia legal.
Passam-se horas. A assistência vê na demora prenúncio de boas notícias.
Frei Caneca, do alto da escada, olhar sereno para a multidão, aguarda paciente o momento extremo.
Por fim, regressa o emissário e diz que nenhum condenado quis aceitar a proposta.
O comandante do batalhão de execução determinou, então, o arcabuzamento ( execução por tiros de arcabuz, arma posteriormente substituída pelo fuzil) do herói, que morreu crivado de balas, sendo o seu cadáver assim jogado, no final da tarde, na porta do convento do Carmo e recolhido, às pressas, por alguns carmelitas, que o sepultaram em local ignorado pela historiografia oficial.

Falta reconhecer

Mesmo sem o merecido reconhecimento da historiografia brasileira, onde outros heróis de menor grandeza, mas de centros econômicos de regiões julgadas mais importante se destacam, frei Caneca não deveria ficar na história exclusivamente como um mártir democrata. Foi, também, um grande orador, maçom, jornalista, professor de matemática e retórica e notável intelectual. Autor de grandes trabalhos bibliográficos, tanto que suas obras foram publicadas em 1876, precedidas de preciosa biografia.
Segundo ainda o Prof. Jorge: “Esses escritos revelam o idealismo que levou os pernambucanos à Revolução de 1817 e à Confederação do Equador, em 1824. O patriotismo da maioria daqueles idealistas era isento de interesses pessoais e do separatismo que alguns autores lhe atribuem. O réu, dizia o advogado de frei Caneca, nunca procurou cisão da integridade do Império, nem mudança de governo… nenhum outro fim teve em vista, senão sustentar a independência do Brasil, a integridade do Império e a justa liberdade da Pátria.

Ideário

Para frei Caneca, seguindo as teorias dos Enciclopedistas, o homem nasceu para a sociedade e sempre teve deveres para com seus semelhantes, aos quais se deve dedicar, com preferência, sem quaisquer outras obrigações. Para ele, a constituição, elaborada pelos representantes do povo, evita os males da falsa democracia e as arbitrariedades e despotismo da monarquia.”
Em suma, Frei Caneca parecia acreditar na bondade inata do povo e na maldade intrínseca do poder absoluto. Para ele, só havia um partido, que era o da Liberdade Civil e da Felicidade da Pátria…” sendo, por tudo isso, deveras merecedor das maiores homenagens, não só pela sua singularidade do ser, como pela pluralidade do fazer.

Verdadeiro herói

Vemos por tudo isso que o Frei Joaquim do Amor Divino Caneca repousa, sem favor nenhum, no lugar de astro de primeiríssima grandeza na galeria dos verdadeiros heróis de nossa Pátria. Soube reagir, com coragem e destemor, nas situações mais difíceis que seu amor pela liberdade, vez por outra, lhe reservava. Como deixa transparecer nesses versos escritos em uma das celas da prisão na Bahia:
“Não posso contar meus males
Nem a mim mesmo em segredo;
É tão cruel o meu fado,
Que até de mim tenho medo.”

(*) Autor/Fonte:  Carlos Bezerra Cavalcanti é jornalista, escritor e pertence ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano e à Academia Recifense de Letras. É colaborador ilustre de O PODER. Publicado, originalmente, no Jornal virtual O Poder.


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